Culto Cristocêntrico à Luz das Escrituras (4ª parte) - O Culto Racional - Ordem e Decência

22/06/2012 21:07

CAPÍTULO 2

 

Outra característica do culto cristocêntrico à luz das Escrituras é quanto à sua “racionalidade”. Aqui deve-se caminhar com muito cuidado, pois o que parece é que há um certo preconceito por parte de alguns grupos evangélicos com o termo “racional”. Porém há de se caminhar nas páginas das Escrituras para se compreender esse conceito. Vejamos por exemplo Romanos, capítulo 12, versículo 1: “Rogo-vos, pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional”.

A palavra grega para “culto racional é λογικὴν λατρείαν (logiken latreían). Segundo nota da Bíblia de Jerusalém, esse termo significa, “eloquente”, “razoável” e “lógico” [1]. Algumas versões traduz esse texto da seguinte forma: “culto espiritual”. Isso significa que o “espiritual” está vinculado àquilo que é “racional”.

A palavra λογικὸν (logikon) aparece também em 1ªPedro, capítulo 2, versículo 2: “Desejai afetuosamente, como meninos novamente nascidos, o leite racional[2], não falsificado, para que por ele vades crescendo”. Brown (2000) apresenta o significado dessa palavra como sendo algo “próprio da fala” e “pertencente à razão”, “racional” [3]. Acerca de 1ª Pedro 2.2 e Romanos 12.1 Brown dá a seguinte explicação:

 

Em 1Pe.2.2, ARA traduz logikos por “espiritual”: desejai ardentemente, como crianças recém nascidas, o genuíno leite espiritual [logikon adolon gala], para que por ele vos seja dado crescimento para salvação”. [...] seria possível sugerir que haja um paradoxo ou contraste deliberado entre o leite, como alimento das criancinhas, e a palavra racional que, ao ser usada como alimento, leva à maturidade (cf. V. 2b). RSV[4] emprega “espiritual” na sua tradução de Rm.12.1: “Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus que apresenteis os vossos corpos por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto espiritual [ten logiken latreian hymon]”. [5]

 

Esse significado expressa melhor, segundo Brown, o conceito do culto cristão que era contrastado com os conceitos judaicos da religião. A escolha dessa palavra em 1ª Pedro, talvez, seja devido  à sua ambiguidade e suas implicações com “espiritual” e “racional” ao mesmo tempo. Portanto, o conceito de racional nas Escrituras relacionado ao culto cristão, não tem, todavia, nenhuma ligação com a razão filosófica e/ou científica. Tem, entrementes, profunda ligação com uma “lógica religiosa” de adoração.

Esse padrão já é possível perceber nos rituais litúrgicos do Antigo Testamento. Uma vez que a exigência divina requeria atos específicos para partes específicas do Tabernáculo, tem-se nesse modelo de culto uma espécie de “lógica”. O ritual do átrio não poderia ser feito no Lugar Santo, por exemplo. O ritual do Lugar Santo não poderia ser feito no Santo dos Santos e vice-versa.

Porém o propósito de um culto racional à luz das Escrituras no Novo Testamento aponta para algo que é tratado pelos escritores neotestamentários que está para além de rituais. Tem mais haver com a edificação do Corpo de Cristo, a saber, a Igreja, estabelecendo a base para um culto organizado que também tem o mesmo propósito, uma vez que, é pela compreensão e inteligibilidade do culto que as pessoas podem coletivamente participar do mesmo, do que com cumprimentos de rituais religiosos.

O que parece é que, para Paulo, em Romanos 12.1, um culto racional está na entrega voluntária de si mesmo para Deus: “Rogo-vos, pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional” (Rm.12.1). Um culto racional é um culto onde a voluntariedade da entrega se dá mediante resposta à misericórdia de Deus.

Para Hendriksen (2001) o que Paulo está querendo dizer é que render tal devoção equivalerá a um culto logiken[6]. Bruce (1979), porém entende que o texto dá margem para a seguinte compreensão: “o culto que vocês, como criaturas racionais, devem oferecer”[7]. Logo, pode-se entender que esse culto racional/espiritual é uma resposta daqueles que “compreenderam” a revelação e por isso glorificam ao único Deus Verdadeiro. Vejamos o que pontua o apóstolo  Paulo em Romanos  1.20-21:

 

Porque as suas coisas invisíveis, desde a criação do mundo, tanto o seu eterno poder, como a sua divindade, se entendem, e claramente se vêem pelas coisas que estão criadas, para que eles fiquem inescusáveis; Porquanto, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, antes em seus discursos se desvaneceram, e o seu coração insensato se obscureceu.

 

O que se pode perceber é que à revelação o homem deveria responder prestando a Deus a glória devida a seu Nome, visto que essa revelação “claramente se vêem pelas coisas criadas” e devido a isso é possível conhecer a Deus, como se pode observar no Salmo 19, versículos 1 ao 3:

           

Os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia as obras das suas mãos. Um dia discursa a outro dia, e uma noite revela conhecimento a outra noite. Não há linguagem, nem há palavras, e deles não se ouve nenhum som; no entanto, por toda a terra se faz ouvir a sua voz, e as suas palavras até aos confins do mundo.

 

Stott (1994), comentando esse texto vai afirmar que o falar de Deus aos homens através da Criação, contém uma mensagem muito clara, e, portanto, fica o pressuposto que o homem tem capacidade para ler o que Deus escreveu no universo[8]. Continua Stott:

 

Toda a pesquisa científica apóia-se nessa pressuposição, na correspondência entre o caráter do que está sendo investigado e a mente de quem investiga. Essa correspondência é a racionalidade. [...] Assim, o segundo motivo cristão pelo qual a mente humana é importante é que o cristianismo é uma religião revelada. Creio que quem melhor expressou esse ponto foi James Or em seu livro “The Cristian View of God and the World” (A Visão Cristã de Deus e do Mundo): Se há uma religião neste mundo que dê relevância ao ensino, sem dúvida tal religião é a de Jesus Cristo. Com freqüência já se tem destacado o fato de que a doutrina tem uma mínima importância nas religiões não-cristãs; nelas o destaque está na realização de um ritual. Mas é precisamente nisto que o cristianismo se diferencia das demais religiões: ele tem doutrina. Ele se apresenta aos homens com um ensinamento definido, positivo, declara-se ser a verdade; nele o conhecimento dá suporte à religião, conquanto seja um conhecimento somente acessível sob condições morais [...][9]

 

O que se pode perceber é que, sendo o homem um ser racional, Deus revelou-se a esse homem de forma que ele pudesse compreender essa revelação sendo, por isso, “indesculpável”.

Acerca de Romanos 12 e 1ª Pedro 2, textos em que aparecem o conceito de “culto racional”, é interessante notar a relação desse culto com a participação e a coletividade por parte daqueles que compõem o Corpo místico de Jesus. Ambos os textos apontam para esse propósito, vejamos, por exemplo o contexto de Romanos 12, versículos 4 ao 18:

 

Porque assim como em um corpo temos muitos membros, e nem todos os membros têm a mesma operação, Assim nós, que somos muitos, somos um só corpo em Cristo, mas individualmente somos membros uns dos outros. De modo que, tendo diferentes dons, segundo a graça que nos é dada, se é profecia, seja ela segundo a medida da fé; Se é ministério, seja em ministrar; se é ensinar, haja dedicação ao ensino; Ou o que exorta, use esse dom em exortar; o que reparte, faça-o com liberalidade; o que preside, com cuidado; o que exercita misericórdia, com alegria. O amor seja não fingido. Aborrecei o mal e apegai-vos ao bem. Amai-vos cordialmente uns aos outros com amor fraternal, preferindo-vos em honra uns aos outros. Não sejais vagarosos no cuidado; sede fervorosos no espírito, servindo ao Senhor; Alegrai-vos na esperança, sede pacientes na tribulação, perseverai na oração; Comunicai com os santos nas suas necessidades, segui a hospitalidade; Abençoai aos que vos perseguem, abençoai, e não amaldiçoeis. Alegrai-vos com os que se alegram; e chorai com os que choram; Sede unânimes entre vós; não ambicioneis coisas altas, mas acomodai-vos às humildes; não sejais sábios em vós mesmos; A ninguém torneis mal por mal; procurai as coisas honestas, perante todos os homens. Se for possível, quanto estiver em vós, tende paz com todos os homens.

 

Vê-se aqui a clara unidade na mais ampla diversidade do Corpo. O exercício dos dons deve corresponder na edificação da igreja. A exortação paulina aqui é um apelo à prática de culto consciente e racional, no qual cada membro compreende seu papel no corpo de Cristo.

Na 1ª epístola de Pedro, capítulo 2, versículos 2 a 5, lemos:

 

[...] desejai, como meninos recém-nascidos, o leite racional, sem dolo, para que por ele cresçais para a salvação, se é que já provastes que o Senhor é benigno. E, chegando-vos para ele, pedra viva, rejeitada, na verdade, pelos homens, mas, para com Deus eleita e preciosa, sois vós também quais pedras vivas, edificados como casa espiritual para serdes um sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais, aceitáveis a Deus por Jesus Cristo.

 

O que Pedro está dizendo tem muito em comum com o que disse Paulo. Pode-se perceber as semelhanças das palavras no corpo dos textos. Por exemplo:

 

 

Rogo-vos, pois, irmãos pela misericórdia de Deus (Rm.12.1a)

desejai afetuosamente, como recém nascidos o leite racional [...] (1Pe. 2.2)

...que ofereçais os vossos corpos como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus

 (Rm.12.1b)

[...] para oferecer sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por Jesus Cristo.

(1 Pe. 2.5)

...que é o vosso culto racional  

(Rm.12.1c)       

[...] que não tínheis alcançado misericórdia, mas agora alcançastes misericórdia. (1 Pe. 2.10)

 

Tem-se, portanto, o mesmo conceito. Paulo inicia apresentando a misericórdia de Deus, dando a entender que, devido essa misericórdia é que fomos alcançados para tal culto; enquanto Pedro termina apontando  que tal culto é possível porque fomos alcançados pela misericórdia. Um abre o conceito, outro, fecha. Ambos exploram a unidade do corpo e a edificação fundada, ora na entrega de um culto racional, ora almejando o leite racional. Sem essa compreensão é impossível uma participação coletiva de um culto que seja ao mesmo tempo saudável e agradável a Deus. Numa grande maioria dos casos o que se vê é uma “reunião de crentes”  buscando entretenimento, quando não, confundindo barulho com espiritualidade.

Há um claro contraste de um culto racional/espiritual para um culto “carismático”[10], cuja compreensão de espiritualidade é a desordem e a irracionalidade (Paulo trata desse assunto em 1ª Coríntios 14 e será o tema do próximo tópico).

Não se pode deixar de considerar Cranfield (1992), para quem culto racional tem haver com uma compatibilidade de compreensão adequada com a verdade do evangelho, sendo portanto, culto inteligente e compreensivo:

 

A oferta do eu é oferta de todo o próprio eu no decorrer da vida concreta, questão não só de pensamentos, sentimentos e aspirações interiores, mas também de palavras e ações exteriores, de obediência de vida. É esta a espécie de culto que pode ser denominada adequadamente compreensiva, visto ser a espécie de culto que o verdadeiro conhecimento do evangelho exige e torna possível. [11]

 

Uma vez que Deus já revelou sua vontade para um culto perfeito[12], cabe ao cristão responder à essa revelação. Stott afirma que: “Todo culto cristão, seja ele público ou pessoal, deve ser uma resposta inteligente à auto revelação de Deus, por suas palavras, e suas obras registradas nas Escrituras”.[13]

E é essa resposta inteligente que fará com que todos os participantes do culto sejam não apenas espectadores, mas cultuem conscientes do significado de estarem ali. O objetivo do culto racional é a edificação da Igreja e tem haver, portanto, com a inteligibilidade e compreensão dos participantes.

É, portanto, por meio desse culto racional/espiritual que os cristãos são qualificados como maduros e, a partir desse critério, os dons espirituais podem ser usados, visto que se compreende o propósito de tais dons, algo que não ocorreu na igreja de Corinto como se pode perceber em 1ª Coríntios, capítulo 14.

 

Culto Organizado

  

Onde está a ordem e a decência na imagem acima? Pois é não tem!

 A igreja de Corinto foi tratada por Paulo como uma igreja composta por “crianças em Cristo” devido à sua infantilidade quanto ao conceito do que é espiritual. Por isso no capítulo 14 da epístola, conforme pontua Calvino, “ele começa apresentando detalhes mais precisos sobre como os coríntios tinham fracassado no uso dos dons espirituais”[14] .

Um culto organizado só será possível através de um culto racional. Essas características não podem ser dissociadas uma da outra. Isso porque, como já foi visto, um culto racional favorece a integração dos participantes em toda a “liturgia”[15], resultando na edificação da igreja reunida, e, por consequência redunda em um culto decente e organizado.

Em contrapartida um culto que não observa essas nuances tende a se distanciar dos critérios bíblicos tornando-se um culto desorganizado, com muita ênfase nos dons espirituais, no barulho e nas emoções descontroladas. Isso evidencia que simplesmente se ignora o que Paulo escreveu aos coríntios, como se pode perceber em 1ª Coríntios 14, versículos 37 ao 40:

 

[...] Se alguém cuida ser profeta, ou espiritual, reconheça que as coisas que vos escrevo são mandamentos do Senhor. Mas, se alguém ignora isto, que ignore. Portanto, irmãos, procurai, com zelo, profetizar, e não proibais falar línguas. Mas faça-se tudo decentemente e com ordem.

 

Lopes (2004) comentando esse texto pontua que “ordem tem o sentido de sequência” [16]. Faz todo sentido quando se percebe que o contexto da carta de Paulo é sobre questões relacionadas ao culto na igreja de Coríntios. Cabe lembrar que essa igreja era rica em dons espirituais, porém foi tratada por Paulo como “meninos em Cristo” como se pode observar em 1ª Coríntios 14, versículos de 1 a 3:

E eu, irmãos, não vos pude falar como a espirituais, mas como a carnais, como a meninos em Cristo. Com leite vos criei, e não com carne, porque ainda não podíeis, nem tampouco ainda agora podeis, porque ainda sois carnais; pois,  havendo entre vós inveja, contendas e dissenções, não sois porventura carnais, e não andais segundo os homens?

 

Esse era um dos muitos problemas naquela igreja, a saber, a divisão. Porém, os dizeres de Paulo revela uma igreja imatura. Calvino comenta esse texto mostrando a diferença que há na forma de Paulo falar sobre “meninos em Cristo” neste texto e Pedro na sua epístola (cf. 1Pe. 2.2):

 

Esta descrição é às vezes usada num bom sentido, como, por exemplo, por Pedro, que nos roga a que sejamos como “crianças recém nascidas”(1 Pe. 2.2); [...] Entretanto, no presente caso, ele lhe atribui um sentido negativo, porque tem referência ao entendimento. Porquanto devemos ser “crianças na malícia, mas não na mente” (Lc. 14.20). esta distinção aclara qualquer possibilidade de haver, aqui, ambiguidade. [...].[17]

 

Concomitantemente o que se vê é o contraste entre possuir todos os dons do Espírito e ser ainda “crianças em Cristo”, ora no que diz respeito às divisões, ora no que diz respeito ao uso dos dons. Isso porque os coríntios não tinham a maturidade suficiente para usar tais dons de forma que a igreja fosse beneficiada, causando assim escândalos em algumas pessoas: “Se, pois, toda a igreja se congregar num lugar, e todos falarem em línguas, e entrarem indoutos ou infiéis, não dirão porventura que estais loucos?” (1Co.14.23).

Acontece que eles, os coríntios, se achavam espirituais demais. Lopes observa que

[...] Já que esses dons existiam em abundância nos cultos pensavam que eram “espirituais”. Entretanto, Paulo tem uma outra opinião. Tratando do problema das divisões na igreja, ele faz um contraste entre a verdadeira espiritualidade e a real situação da igreja dos coríntios: “...não vos pude falar como a espirituais, e sim como a carnais, como a crianças em cristo... ainda sois carnais ... andais segundo o homem” (1Co. 3.1-4; contraste com 1Co. 2.6-16).[18]

 

Essa discrepância serve para mostrar que um culto verdadeiramente espiritual não está associado, como já foi dito, aos padrões estabelecidos pela emoção humana[19]. Daí a necessidade da ordem no culto servir para o bom uso dos dons espirituais. Ou seja, não basta apenas possuir dons, é necessário saber usá-los “com ordem e decência”.

É possível também, pelo contexto de 1ª Coríntios 14, entender que Paulo não está apenas defendendo a importância de uma ordem e decência como um fim em si mesmo. Há também uma preocupação com a razão de ser do culto. O culto não pode ser um momento de se extravasar emoções. Não obstante, percebe-se que Paulo dá diretrizes para que a igreja de coríntios saiba lidar com os dons espirituais, apontando em 1ª Coríntios 14, versículos 1 ao 4 os critérios pelos quais os mesmos devem ser usados:    

 

Segui o amor, e procurai com zelo os dons espirituais, mas principalmente o de profetizar. Porque o que fala em língua desconhecida não fala aos homens, senão a Deus; porque ninguém o entende, e em espírito fala mistérios. Mas o que profetiza fala aos homens, para edificação, exortação e consolação. O que fala em língua desconhecida edifica-se a si mesmo, mas o que profetiza edifica a igreja.

 

Um dos critérios apontado por Paulo é quanto a questão da inteligibilidade do culto coletivo. A ordem, portanto está no fato de poder saber usar o que se tem, neste caso, os dons, e, aqui especificamente, o de linguas. Kistemaker (2004) comentando esse texto diz que

 

[...] falar em línguas é um culto particular dirigido a Deus [...] falar numa língua sem interpretação não comunica nada que tenha sentido, porque as pessoas são incapazes de entender as palavras que são ditas. Embora Deus conheça cada palavra dita, seu povo é incapaz de compreender essas palavras e, portanto, não é edificado.[20]

 

Portanto o que está em voga é a edificação da igreja que se dará mediante a compreensão do culto. Daí a necessidade de um culto racional (que também é cristocêntrico). Ora, a importância da ordem no culto não proíbe que se faça uso dos dons. Mas como o próprio termo diz, apenas organiza para que se use de forma decente. Paulo em 1ª Coríntios 14, versículos 5 a 6 continua:

 

E eu quero que todos vós faleis em línguas, mas muito mais que profetizeis; porque o que profetiza é maior do que o que fala em línguas, a não ser que também interprete para que a igreja receba edificação. E agora, irmãos, se eu for ter convosco falando em línguas, que vos aproveitaria, se não vos falasse ou por meio da revelação, ou da ciência, ou da profecia, ou da doutrina?

 

O critério continua sendo o mesmo, ou seja, o culto está sobre o critério da compreensão no que diz respeito ao uso dos dons espirituais. Ele deseja que todos falem em línguas, mas “muito mais que profetizeis”. E isso pelo simples fato de que aquele que profetiza edifica a igreja. Em contrapartida, no que diz respeito as línguas, podem ser faladas, desde que haja intérprete e que seja feito seguindo uma ordem, um critério que o apóstolo pontua em 1ª Coríntios 14, versiculos 27 a 33:

 

E, se alguém falar em língua desconhecida, faça-se isso por dois, ou quando muito três, e por sua vez, e haja intérprete. Mas, se não houver intérprete, esteja calado na igreja, e fale consigo mesmo, e com Deus. E falem dois ou três profetas, e os outros julguem. Mas, se a outro, que estiver assentado, for revelada alguma coisa, cale-se o primeiro. Porque todos podereis profetizar, uns depois dos outros; para que todos aprendam, e todos sejam consolados. E os espíritos dos profetas estão sujeitos aos profetas. Porque Deus não é Deus de confusão, senão de paz, como em todas as igrejas dos santos.

 

Percebe-se nesta passagem que Paulo estabelece critérios quanto ao uso dos dons espirituais: “se alguém falar em língua desconhecida faça-se isso por dois, ou quando muito três, e por sua vez, e haja intérprete”. Esse critério contrasta com a realidade atual de muitas igrejas, sobretudo igrejas pentecostais.

 É interessante notar que para Paulo esse não é apenas um ponto de vista peculiar à sua pessoa, mas como ele vai notificar mais adiante no versículo 27: “se alguém cuida ser profeta ou espiritual, reconheça que as coisas que vos escrevo são mandamentos do Senhor”.

Calvino comentando essa passagem afirma que:

 

[Paulo] admite espaço para as línguas, desde que haja concomitante interpretação, denotando, naturalmente, que nada é deixado obscuro. Portanto, ao corrigir o erro dos coríntios, Paulo usa uma mistura bem equilibrada. De um lado, ele não rejeita nenhum dom divino, não importa qual seja ele, de modo a que todas as bênçãos que Deus outorga sejam vistas na corporação do povo crente. De outro, ele impõe restrições para impedir que a ambição furtivamente tome o lugar que pertence à glória de Deus e para evitar que algum dom menos importante obstrua a ação dos que são mais importantes.[21]

 

Seguindo o mesmo critério Paulo pontua que, se não houver intérprete a pessoa pode falar em línguas, porém que seja feito de uma forma onde apenas a consciência tenha essa comunicação com Deus: “Mas, se não houver intérprete, esteja calado na igreja, e fale consigo mesmo, e com Deus.” Ora, não há, como admitiu Calvino, quaisquer objeções quanto o uso dos dons. Todavia, no caso de dom de línguas, é lícito que se fale nas igrejas seguindo esses critérios estabelecidos como sendo mandamentos do Senhor. Do contrário, a restrição do uso desse dom é válida, ou seja, é melhor ficar calado na igreja, visto que não haverá edificação para o coletivo, uma vez que “quem fala em língua desconhecida não fala aos homens, senão a Deus; porque ninguém o entende, e em espírito fala mistérios” (14.2).

Acerca da profecia o critério é o mesmo: “E falem dois ou três profetas, e os outros julguem. Mas, se a outro, que estiver assentado, for revelada alguma coisa, cale-se o primeiro.” Paulo já havia dito que esse dom, da profecia, é maior que o de línguas, e isso pelo simples fato de a profecia ser inteligível, ou seja, todos são edificados. Agora ele argumenta que, no caso de seu uso pela igreja, que seja feito também com critérios, cujos quais, ele estabelece apresentando uma ordem: “falem dois ou três [...]”. Não há, todavia, restrições quanto ao uso, porém, mais uma vez o que deve prevalecer é a ordem e a decência no que diz respeito ao uso dos dons, e, quanto à profecia cabe aos demais julgar o que está sendo dito, pois como observou Calvino acerca desta passagem:

 

[...] a tarefa do homem é simplesmente julgar, por meio do espírito de Deus, se é sua Palavra que está sendo declarada, ou se, usando esta como pretexto, os homens estão erroneamente exibindo o que eles mesmos engendraram.[22]

 

“Porque todos podereis profetizar, uns depois dos outros; para que todos aprendam, e todos sejam consolados.” Se a finalidade da profecia é o ensino e a consolação, entende-se que essa profecia não é também algo que deixa o profeta extático. Profetizar é expor a Palavra de Deus de forma que todos compreendam e sejam por isso ensinados e consolados. Esse é o objetivo da profecia.

Como se pôde perceber, a finalidade dos dons espirituais está relacionada com um culto que seja ao mesmo tempo racional e organizado, que são evidências de um culto maduro, trazendo edificação para a igreja como Corpo de Cristo. Não obstante esses dons terem mais valor mediante sua inteligibilidade e compreensão por parte dos participantes e dos que se servem deles. Não à toa Paulo termina essa questão pontuando a decência e a ordem na igreja: “faça-se tudo decentemente e com ordem” (14.40).

 

Esta conclusão é um tanto geral, porque não só sumaria toda a situação em poucas palavras, mas também os diferentes aspectos dela. E, mais que isto, nos fornece um padrão adequado para a avaliação de tudo o que se acha conectado com a organização externa (=ad externam politiam). [...] daqui devemos extrair (por assim dizer) um princípio geral, ou seja: que o propósito da organização da igreja (=ecclesiae politia) é incrementar o espírito de serviço.[23]

 

Pode-se perceber que a característica do culto quanto à sua racionalidade e quanto à sua ordem está intrinsecamente relacionada com a inteligibilidade e compreensão, bem como a edificação e união da igreja enquanto Corpo de Cristo. Todavia, não se pode dividir o ser humano no culto, ou seja, a inteligibilidade do culto deve conduzi-lo a crescer na maturidade e no controle de sua vontade, sentimentos e perspectivas como adorador.

 Assim sendo, faz-se necessário que as igrejas observem os critérios bíblicos da revelação e respondam, no templo, com cultos que cumpram seus requisitos, quanto à ortodoxia, para manifestar fora do templo, um culto pautado na justiça, na misericórdia e na fé prática, afinal, como afirma Rev. Caio Fabio, "A manifestação cúltica do lado de dentro tem que ser, antes e, sobretudo, afirmada do lado de fora. Em outras palavras, se não há culto na vida, não há vida no culto.” [24]

 

 


[1] Bíblia de Jerusalém, p. 1986

[2] Grifo meu

[3]BROWN, Colin. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2000 p. 1534

[4] Sigla inglesa (Revised Standard Version – Versão Padrão Revisada).

[5] Ibdem – p. 1534

[6] HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento: Romanos. São Paulo: Cultura Cristã. 2001, p. 527

[7] BRUCE, F.F. Romanos: Introdução e Comentários. São Paulo: Vida Nova. 1979 p. 183

[8] STOTT, John R.W. Crer é Também Pensar. São Paulo: ABU editora, 1994.p. 11

[9] Ibdem. p. 12

[10] No sentido original da palavra, “carismático” significa um culto racional/espiritual, sendo esse o sentido bíblico. No entanto aqui ele aparece como uma palavra que se aplica com perfeição ao conceito banalizado pela igreja atual, visto que ganhou uma conotação de bagunça e libertinagem no culto, sem critérios bíblicos. A palavra “moderno” seria melhor empregada, todavia preferimos “carismático” pela forma como ela é compreendida na atualidade.

[11] CRANFIELD, C.E.B. Carta aos Romanos. São Paulo: Ed. Paulinas. 1992, p. 277-278

[12] Todos os desdobramentos da perfeição do culto que agrada a Deus não se limitam à ortodoxia, mas se expande à práxis religiosa. Essa verdade é possível se vê nos profetas do AT que denunciaram as negligencias quanto à prática da justiça. Sendo essa fundamental para uma vida cultica.

[13]STOTT, John R.W. Crer é Também Pensar. São Paulo: ABU editora, 1994. p. 21

 

 

 

[14] CALVINO. João. Exposição de 1 Coríntios. São Paulo: Paracleto, 1996, p.24

[15] Esse conceito será melhor compreendido no próximo capítulo, porém cabe ressaltar que liturgia é vida, e que, portanto, não está limitada ao andamento do culto cristão no templo, por isso as aspas.

[16] LOPES, Augustus Nicodemos. O Culto Espiritual: Um estudo em 1 Coríntios sobre questões Atuais e Diretrizes Bíblicas para o Culto Cristão.São Paulo: Cultura Cristã, 2004. p. 242

 

[17] Ibdem. p. 98

[18] Ibdem p.30

[19] Porém o culto também é um momento para se externar emoções. Quem não chora de alegria quando percebe a misericórdia divina em qualquer parte do culto?

[20] KISTEMAKER, Simon. 1 Coríntios. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. p. 662

[21] CALVINO, João. Exposição de 1 Coríntios. São Paulo: Paracleto, 1996 p. 430

 

[22] Ibdem. p. 432

[23] Ibdem. p. 443-444

[24] D’ARAÚJO FILHO, Caio Fabio. A Igreja Fora do Portão. São Paulo, Cultura Cristã: 1995.p. 16-17