Culto Cristocêntrico à Luz das Escrituras (5ª parte) - A Práxis Religiosa

22/06/2012 21:43

É a partir deste momento que se pode ter um conceito mais amplo do que significa culto à luz das Escrituras. Se há um meio de mostrar a fé, este meio é através das obras. A Bíblia revela isso! O culto verdadeiro é a exteriorização da fé, conforme se pode perceber em Tiago, capítulo 1, versículos 26 ao 27:

 

Se alguém entre vós cuida ser religioso, e não refreia a sua língua, antes engana o seu coração, a religião desse é vã. A religião pura e imaculada para com Deus, o Pai, é esta: Visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações, e guardar-se da corrupção do mundo.

 

Para complementar esse conceito, faz-se necessário compreender o significado do termo culto e esse significado em uso. Por que explicar o conceito do termo “culto” só agora? Ora, por uma razão simples: ver-se-á que o significado do conceito está todo ele voltado para o “serviço religioso”. Sempre haverá uma conotação de ajuda ao próximo, à práxis. E, exatamente neste ponto, é que surge a problemática: qual a importância da ação social para a comunidade e sua relação com o culto a Deus? A igreja atual à luz do significado do conceito de culto, cultua a Deus?

White (1997), citando o professor Paul W. Hoon afirma que o centro do culto é cristológico e, por isso mesmo profundamente encarnacional, visto ser governado por todo o evento de Jesus Cristo. Pontua White:

 

O culto cristão está vinculado diretamente aos eventos da história da salvação. Cada evento nesse culto está ligado diretamente ao tempo e à história enquanto cria pontes para eles e os traz para dentro do nosso presente. O “núcleo do culto”, diz Hoon, “é Deus agindo para dar sua vida ao ser humano e para levar o ser humano a participar dessa vida”. Por isso tudo que fazemos como indivíduos ou como igreja é afetado pelo culto. A vida cristã, afirma Hoon, é uma vida litúrgica.[1]

 

A compreensão desse pensador cristão parece se fundamentar em duas palavras chave, a saber, revelação e resposta. Deus se revela através de Jesus Cristo e nós respondemos através do mesmo. Outro importante pensador, segundo White, é Peter Brunner, teólogo luterano, para quem culto vai significar o serviço, ora de Deus aos seres humanos, ora dos seres humanos a Deus. Todavia esse serviço está estritamente vinculado às ações fora do Templo. White entende que Brunner desfruta de uma clara vantagem ao fazer uso do termo alemão para designar o culto: “Gottesdienst, que tem tanto a conotação de serviço de Deus aos seres humanos quanto a de serviço dos seres humanos a Deus” [2].

Comentando o pensamento de Brunner, White pontua que:

 

O equivalente a “Deus” (Gott) pode-se discernir, porém menos familiar é dienst. Pessoas viajadas a reconhecerão como a palavra que identifica postos de gasolina em terras germânicas. Serviço é o equivalente mais aproximado, e é interessante que também em inglês esta palavra é usada tanto para referir-se a serviço no sentido de culto quanto a postos de gasolina. “Serviço” significa algo feito para outros, não importa se estamos falando de serviço doméstico, serviço municipal de água e esgoto ou serviço social. Ele reflete o trabalho prestado ao público [...][3]

 

Outras palavras são trabalhadas por White buscando descrever o significado do termo. Entre elas encontra-se a palavra Liturgia. Esse termo tem origem secular. Segundo o Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento essa palavra é composta por “laos (Iônico leos), “povo”, e ergon, “trabalho””.[4] Ou seja, na Grécia antiga equivalia a um trabalho do povo, trabalho público. White pontua que “liturgia é, então, um trabalho executado pelas pessoas em benefício de outras” [5]

Outro termo muito comum para compreender o conceito de culto é a palavra neotestamentária latreia, que segundo White é:

 

[...] muitas vezes traduzido para o inglês por service ou worship [ou “culto” em português]. Em Rm. 9.4 e Hb. 9.1 e 9.6 esse vocábulo refere-se ao culto judeu no templo, ou pode significar qualquer obrigação religiosa (no sentido de fazer boas obras) [6], como em Jo. 16.2.[...] [7]

 

Neste sentido, qualquer que matasse um discípulo pensaria estar fazendo uma “boa ação” para Deus.

O termo hebraico é עָבַד (`áböd= serviço). Transmite a idéia de ação social. Prestar culto e cultuar são o mesmo que servir, no sentido de fazer ação social, conforme se pode observar em Deuteronômio capítulo 10, versículos 17 ao 20:

 

Pois o SENHOR vosso Deus é o Deus dos deuses, e o Senhor dos senhores, o Deus grande, poderoso e terrível, que não faz acepção de pessoas, nem aceita recompensas; Que faz justiça ao órfão e à viúva, e ama o estrangeiro, dando-lhe pão e roupa. Por isso amareis o estrangeiro, pois fostes estrangeiros na terra do Egito. Ao SENHOR teu Deus temerás; a ele servirás, e a ele te chegarás, e pelo seu nome jurarás.

 

A palavra servir encontrada neste texto, também pode ser compreendida como culto.

Enfim, o culto enquanto conceito prático está resumido nas ações sociais[8] para com o próximo, visto ser o cumprimento da lei: “amarás ao Senhor teu Deus... e ao teu próximo como a ti mesmo”. Mt. 22.37-40

A práxis religiosa é algo fundamental no culto cristão. Não havia nada de errado, por exemplo, com a ortodoxia dos fariseus, o que estava errado era com a práxis religiosa. Pode-se perceber a crítica de Jesus em relação a isso, quando em Mateus, capítulo 23, versículo 23, ele afirma:

 

Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que dizimais a hortelã, o endro e o cominho, e desprezais o mais importante da lei, o juízo, a misericórdia e a fé; deveis, porém, fazer estas coisas, e não omitir aquelas.

 

Portanto, é mister entender que Deus mesmo levantou seus servos, os profetas, para pregar contra a teoria da ortodoxia em Israel. Para Deus, justiça, misericórdia e fé são fundamentais na prática de um culto essencialmente cristão centrado em Jesus. É possível entender que o que Jesus está falando aos fariseus é sobre a importância de se exceder à forma que é sempre externa.

Num dos livros mais antigos da Bíblia, o livro de Jó, pode-se observar como esse personagem é descrito em relação ao seu culto. Segundo Storniolo (1992), “Jó é adaptado ao meio social”, visto que ele era reto (yashar), ou seja, praticava a justiça e a honestidade para com os seus semelhantes[9]. Storniolo pontua ainda que:

[...] Jó realizava o ideal da justiça: libertava o pobre, defendia o órfão e a viúva, era bendito pelo moribundo, guiava o cego, amparava o coxo, protegia os pobres, defendia o desconhecido, combatia o injusto, e libertava aqueles que o injusto tinha vitimado (Jó. 29.11-17).[10]

 

Ora, é em relação a isso que Deus outorga ao seu povo Israel que não bastava a prática da ortodoxia cúltica sem a práxis religiosa, conforme se pode perceber em vários textos dos livros proféticos, todavia, vejamos o que está em Isaías capítulo 1, versículos 10 ao 17:

 

Ouvi a palavra do SENHOR, vós poderosos de Sodoma; dai ouvidos à lei do nosso Deus, ó povo de Gomorra. De que me serve a mim a multidão de vossos sacrifícios, diz o SENHOR? Já estou farto dos holocaustos de carneiros, e da gordura de animais cevados; nem me agrado de sangue de bezerros, nem de cordeiros, nem de bodes. Quando vindes para comparecer perante mim, quem requereu isto de vossas mãos, que viésseis a pisar os meus átrios? Não continueis a trazer ofertas vãs; o incenso é para mim abominação, e as luas novas, e os sábados, e a convocação das assembléias; não posso suportar iniqüidade, nem mesmo a reunião solene. As vossas luas novas, e as vossas solenidades, a minha alma as odeia; já me são pesadas; já estou cansado de as sofrer. Por isso, quando estendeis as vossas mãos, escondo de vós os meus olhos; e ainda que multipliqueis as vossas orações, não as ouvirei, porque as vossas mãos estão cheias de sangue. Lavai-vos, purificai-vos, tirai a maldade de vossos atos de diante dos meus olhos; cessai de fazer mal. Aprendei a fazer bem; procurai o que é justo; ajudai o oprimido; fazei justiça ao órfão; tratai da causa das viúvas.

Tem-se aqui a denúncia da ortodoxia do culto: a multidão dos sacrifícios, os holocaustos de carneiros e o sangue de bezerros, Deus chama de ofertas vãs. Tem-se num primeiro momento uma crítica profética em relação ao ritual que requeria derramamento de sangue. Num segundo momento, a denúncia se estende aos rituais do cerimonial judaico, tais como: queima de incenso, luas novas, sábados e festas solenes. Esses são os motivos pelos quais Deus esconde os olhos e escolhe não atender as orações do povo.

Croatto (1989) elucida esse texto apontando a metáfora nele existente quando se refere a Sodoma e Gomorra para falar de Jerusalém no Verso 10, onde o profeta reporta-se para os chefes e governantes. Ou seja, segundo Croatto, a crítica é dirigida contra os que dirigem o povo:

 

Estes mesmos poderosos no meio do povo estão na mira da dura crítica contra o culto. Só os ricos podem “encher” o templo com animais para os sacrifícios. Para Javé isso é vazio, vão e abominável (v.13). O texto é abundante em expressão de rejeição. [...] da acusação judicial (v.10-15) se passa para a exortação, remarcada com nove imperativos que formam um crescendo do genérico para o específico, ou seja, a justiça. Esse final retoma e precisa a referencia ao próximo com a expressão: “vossas mãos estão cheias de sangue”. O texto assinala, contudo, que é possível uma mudança de práxis. Há um espaço para a conversão, como é clara sua relação com os gestos concretos de amor e justiça para com o próximo, especialmente o oprimido e o desvalido. Este tema terá uma ressonância interminável ao longo do livro de Isaías. ”[11]

 

Neste texto o profeta faz ecoar a voz do Senhor que pede que o seu povo aprenda a praticar o bem, e, classifica esse bem como sendo: buscar o direito, corrigir o opressor, fazer justiça ao órfão e defender a causa das viúvas. É essa integridade cúltica que se tem em Jó, como se pode perceber no capítulo 31, versículos 16 ao 23:

[...] Se retive o que os pobres desejavam, ou fiz desfalecer os olhos da viúva, ou se, sozinho comi o meu bocado, e o órfão não comeu dele (Porque desde a minha mocidade cresceu comigo como com seu pai, e fui o guia da viúva desde o ventre de minha mãe), se alguém vi perecer por falta de roupa, e ao necessitado por não ter coberta, se os seus lombos não me abençoaram, se ele não se aquentava com as peles dos meus cordeiros, se eu levantei a minha mão contra o órfão, porquanto na porta via a minha ajuda, então caia do ombro a minha espádua, e separe-se o meu braço do osso. Porque o castigo de Deus era para mim um assombro, e eu não podia suportar a sua grandeza.

 

O que se percebe é que Jó tinha práxis em seu culto, aliás, a práxis é parte essencial do culto, sem a qual não se cumpre o propósito justiça, da misericórdia e da fé prática, visto serem estas as exigências que Deus requeria do seu povo, muito mais que práticas de rituais religiosos.

O ritual cúltico exigido pela lei de Moisés deveria refletir a vida cúltica do povo de Deus, ou seja, deveria refletir a ação social e o seu amor incondicional pelo próximo. Ter uma vida santa, ser devoto de uma vida de oração, buscar uma vida piedosa, buscar encher-se do Espírito Santo, e outros “rituais” sagrados, deveriam refletir para o propósito bíblico que nunca é centrado apenas na própria pessoa, mas aponta para o objetivo principal que é a glorificação a Deus por meio do amor ao próximo. No entanto, a igreja tem se acomodado numa prática repetitiva de culto ortodoxo, e em conseqüência disso tem negado o culto fora do templo por meio das ações culticas, enquanto verdadeira liturgia de vida.

Como já vimos acima, a ordem das ofertas, apontava para um significado cristológico no culto do Antigo Testamento. Todavia, é em relação a esses rituais que, conforme se observa nos profetas, Deus rejeita tais ofertas devido a negligência dos israelitas quanto à práxis. Tal negligência tornava os rituais banalizados.

O problema da banalização daqueles ritos estava no fato de que, em primeiro lugar, eles representavam e apontavam para Jesus Cristo, conforme já se pôde observar. Mecanizar isso era banalizar a essência desses ritos. Neste primeiro momento o israelita tinha a oportunidade de mostrar seu amor incondicional a Deus. Em segundo lugar, todas as práticas religiosas deveriam refletir a vida cúltica daquele povo em relação ao seu próximo, que a Bíblia os descreve como sendo na maioria das vezes “cuidar das causas das viúvas, dos órfãos e dos estrangeiros”, em outras palavras, fazer boas obras através das ações sociais.  Esses dois pontos revelam o cumprimento de toda a lei: amar a Deus e ao próximo.

Outro profeta que se insurge contra as práticas enfadonhas do culto enquanto apenas ortodoxia é Amós:

 

Assim diz o SENHOR: Por três transgressões de Israel, e por quatro, não retirarei o castigo, porque vendem o justo por dinheiro, e o necessitado por um par de sapatos, suspirando pelo pó da terra, sobre a cabeça dos pobres, pervertem o caminho dos mansos; e um homem e seu pai entram à mesma moça, para profanarem o meu santo nome. E se deitam junto a qualquer altar sobre roupas empenhadas, e na casa dos seus deuses bebem o vinho dos que tinham multado.[12]

 

Tem-se aqui a perversão da justiça, que vai desde a injustiça contra o próximo, e, mesmo contra Deus. Balancin e Storniolo comentam que as vítimas neste caso, são: “o justo, o necessitado, o fraco, o pobre, a jovem e, ao lado deles, o nome santo do próprio Deus”.[13]

Lawrence (2004) comenta esse texto esclarecendo os seguintes tópicos:

 

“Vendem o justo”. Os direitos dos pobres, cuidadosamente protegidos pela Lei, estavam sendo regularmente violados. Essa injustiça “institucionalizada” afastara os “humildes” da possibilidade de seguir o caminho de Deus em amor e obediência. É difícil para o oprimido amar o opressor!

“Pai e filho”. Provável referência ao uso da mesma prostituta cultual. Se for isso, então era tanto uma violação declarada do mandamento da Lei, de adorar somente a Deus quanto a adoção da imoralidade grosseira da adoração pagã.

“Roupas tomadas em penhor”. Amós volta ao tema central da justiça. A Lei exigia que, se a capa do pobre em penhor de empréstimo ou dívida, deveria ser devolvida antes do anoitecer, pois a capa era também o cobertor do pobre (Dt. 24.12-13). Mas agora havia pilhas de capas em volta dos altares, no lugar de descanso dos adoradores ricos!

“Vinho recebido como multa”. O vinho extorquido dos pobres como pagamento de taxas ou multas era usado nos centros de adoração a Deus. Assim, até Deus parecia fazer parte da opressão.[14]

 

Ora, vê-se que tal injustiça é insuportável para Deus. As denúncias seguem inclusive mostrando que a prática do culto em Israel era uma transgressão, um pecado. Como pode um culto ser pecado? Uma vez que há ortodoxia, mas não há práxis, tal culto serve apenas para mascarar o vazio. Está registrado em Amós, capítulo 4, versículos 4 e 5:

 

Vinde a Betel, e transgredi; a Gilgal, e multiplicai as transgressões; e cada manhã trazei os vossos sacrifícios, e os vossos dízimos de três em três dias. E oferecei o sacrifício de louvores do que é levedado, e apregoai as ofertas voluntárias, publicai-as; porque disso gostais, ó filhos de Israel, disse o Senhor DEUS.

 

Percebe-se que práticas, tais como, sacrifícios, dízimos, sacrifícios de louvores e ofertas foram totalmente rejeitadas por Deus, uma vez que tais atos ortodoxos, ou seja, cuja licitude compõe o ritual cultico em Israel, não condiz com a práxis do povo enquanto conhecedores de Deus. Tal povo é por isso, passível de repreensão e correção. Acerca disso Balancin pontua que:

 

[...] o que Javé deseja não é o ritual das festas, sacrifícios, ofertas, cânticos e músicas. O que ele quer é “ver brotar o direito como água e correr a justiça como riacho que não seca” (5.24). A justiça e o direito, portanto, tornam-se, na visão do profeta, o verdadeiro santuário, onde o povo pode viver o compromisso com o Deus da libertação. [15]

 

É diante deste cenário bíblico de denúncias em relação à praticidade litúrgica que se pode refletir nas duas problemáticas levantadas acima.  Isso devido à freqüência com que a igreja hodierna tem se assemelhado ao mesmo padrão denunciado pelos profetas. A denúncia, todavia, não limita-se apenas no contexto da negligencia da práxis, mas alcança também, e, sobretudo a ortodoxia.

 Ora, o reflexo do que se aprende no templo é que é visto fora dele. E, como já se pôde ser observado, a falta da sã doutrina na maior parte das igrejas tem crescido a cada dia. A cristocentricidade de um culto cristão à luz das escrituras só é possível quando a igreja entende que participa da vida e obra de Jesus, e, busca encarnar isso no seu dia a dia. Senão vejamos o que diz Tiago, no capítulo 2, versículos 15 ao 18:

 

E, se o irmão ou a irmã estiverem nus, e tiverem falta de mantimento quotidiano, E algum de vós lhes disser: Ide em paz, aquentai-vos, e fartai-vos; e não lhes derdes as coisas necessárias para o corpo, que proveito virá daí? Assim também a fé, se não tiver as obras, é morta em si mesma. Mas dirá alguém: Tu tens a fé, e eu tenho as obras; mostra-me a tua fé sem as tuas obras, e eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras.

 

Assim sendo, o que se pode entender a partir de tais pressupostos é que o culto cristão está intrinsecamente relacionado ao serviço litúrgico, cujos desdobramentos transcendem as paredes do templo.

As Escrituras apresentam também no contexto neotestamentário, afora o que já fora visto em Tiago, textos de caráter confrontador em relação à liturgia cultica enquanto práxis religiosa para o dia a dia, como por exemplo, Mateus, Capítulo 19, versículos 16 ao 22:

 

E eis que, aproximando-se dele um jovem, disse-lhe: Bom Mestre, que bem farei para conseguir a vida eterna? E ele disse-lhe: Por que me chamas bom? Não há bom senão um só, que é Deus. Se queres, porém, entrar na vida, guarda os mandamentos. Disse-lhe ele: Quais? E Jesus disse: Não matarás, não cometerás adultério, não furtarás, não dirás falso testemunho; Honra teu pai e tua mãe, e amarás o teu próximo como a ti mesmo. Disse-lhe o jovem: Tudo isso tenho guardado desde a minha mocidade; que me falta ainda? Disse-lhe Jesus: Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; e vem, e segue-me. E o jovem, ouvindo esta palavra, retirou-se triste, porque possuía muitas propriedades.

 

O que parece é que o anseio do jovem é cumprir o padrão estabelecido por Deus, todavia, não aceitou o desafio da busca pela justiça. Seu “culto” era apenas ortodoxo, num cumprimento enfadonho de rituais. Quando desafiado à práxis, à justiça, ao cumprimento do ideal litúrgico para um culto perfeito, preferiu as riquezas. Storniolo afirma que: “De fato, qual é o rico que queira se tornar radicalmente pobre, para se unir aos pobres e lutar pela justiça?” [16]

Para ser perfeito eram necessárias igualmente ortodoxia e práxis.

Outro texto neotestamentário que aponta para a necessidade da prática da benfenfeitoria por parte daqueles que foram alcançados por Deus, encontra-se em Efésio capítulo 2, versículos 4 a 10:

 

Mas Deus, que é riquíssimo em misericórdia, pelo seu muito amor com que nos amou, Estando nós ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou juntamente com Cristo (pela graça sois salvos), E nos ressuscitou juntamente com ele e nos fez assentar nos lugares celestiais, em Cristo Jesus; Para mostrar nos séculos vindouros as abundantes riquezas da sua graça pela sua benignidade para conosco em Cristo Jesus. Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus. Não vem das obras, para que ninguém se glorie; Porque somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus preparou para que andássemos nelas.[17]

 

É sabido à luz das Escrituras que ninguém é salvo pelas obras, porém, a mesma Escritura revela o propósito de tal salvação: “as boas obras”. Ou seja, fazer o bem. Foulkes (1963) afirma que tais obras “fazem parte da nova vida como uma condição inalienável” e que a nova criação “deve ser encarada como sendo para uma vida em justiça e retidão” [18].

O contexto deixa claro que somente em Cristo o cristão pode oferecer um culto perfeito a Deus, quando diz “[...] criados em Cristo Jesus para que andássemos nelas”, ou seja, apenas e tão somente através de Jesus que tais obras encontram sua expressão maior.

O que se pode observar é que tal prática – as boas obras – era comum na igreja de Atos. Alguns textos revelam que os crentes da igreja primitiva tinham por costume testemunhar sua fé através de práticas de justiça e misericórdia, e, isso era apenas a manifestação prática de uma liturgia fora das paredes do templo.

Em Atos, capítulo 4, versículos 32 ao 37 temos:

 

E era um o coração e a alma da multidão dos que criam, e ninguém dizia que coisa alguma do que possuía era sua própria, mas todas as coisas lhes eram comuns. E os apóstolos davam, com grande poder, testemunho da ressurreição do Senhor Jesus, e em todos eles havia abundante graça. Não havia, pois, entre eles necessitado algum; porque todos os que possuíam herdades ou casas, vendendo-as, traziam o preço do que fora vendido, e o depositavam aos pés dos apóstolos. E repartia-se a cada um, segundo a necessidade que cada um tinha. Então José, cognominado pelos apóstolos, Barnabé (que, traduzido, é Filho da consolação), levita, natural de Chipre, Possuindo uma herdade, vendeu-a, e trouxe o preço, e o depositou aos pés dos apóstolos.

 

Kistemaker (2006) esclarece que a expressão “e era um o coração e a alma” remete a Deuteronômio 6.5, como sendo parte do resumo do decálogo, uma vez que essa expressão puramente judaica aponta para o cumprimento de toda a lei, quando os cristãos manifestam seu amor a Deus no plano horizontal, aos irmãos e irmãs necessitados. “Dessa forma” pontua ele, “cumprem a segunda parte deste sumário: ‘amarás ao próximo como a ti mesmo’” (Mc 12.31) [19].

O livro de Atos contém exemplos importantes e que devem servir de referência para todos os crentes em Jesus que desejam oferecer a Deus um culto perfeito através das boas ações. No capitulo 9, versículo 36 lemos: “E havia em Jope uma discípula chamada Tabita, que traduzido se diz Dorcas. Esta estava cheia de boas obras e esmolas que fazia”.

Lucas ao descrever o perfil desta mulher faz questão de pontuar  que ela “estava cheia de boas obras e esmolas que fazia”. Kistemaker comenta da seguinte forma:

 

Esta senhora era uma verdadeira discípula de Jesus Cristo, pois vivia seu cristianismo em tudo o que dizia e realizava. Era conhecida por seu incansável trabalho entre os pobres; fazia obras de bondade e compaixão. Aparentemente, ela era abençoada com bens materiais. Sempre que tinha oportunidade, vivia pela ordem divina de cuidar dos pobres (comparar com Dt. 15.11; Mt. 26.11; Gl. 6.9-10)[20]

 

Ora, não por acaso Lucas a descreve assim, visto que não somente em Atos, mas também no seu Evangelho, Lucas deu grandes destaque para tal “virtude”. (cf. Lc.11.41; 12.33; 18.35). Mas é em Atos que o evangelista destaca com mais ênfase tal prática: “E eis que diante de mim se apresentou um homem com vestes resplandecentes, e disse: Cornélio, a tua oração foi ouvida, e as tuas esmolas estão em memória diante de Deus.” (Atos 10.31).

Tem-se aqui outro exemplo de alguém que vivia na práxis de boas obras, não obstante, seu culto enquanto ortodoxia parece contrastar com tais práticas. Sim, pois uma vez que suas esmolas e suas orações são aceitos por Deus, seus “rituais” culticos (ortodoxos) parecem não ser, e isso se compreende pela leitura do contexto, pois foi necessário que Cornélio recebesse o Espirito Santo para ser participante de fato de um Corpo que glorifica a Deus apenas através de Jesus Cristo. Foi a partir daí que Pedro entendeu que Deus não faz ascepção de pessoas.

Existe uma importância de caráter imediato de que a igreja entenda que seu chamado para esse mundo não é ajuntar riquezas com fim de através destas glorificar a Deus, mas que suas boas obras, como sendo parte importante do culto, de uma liturgia vital é essencial para com a causa da justiça, da misericórdia e da fé pratica, vivendo a responsabilidade de testemunhar o Senhor por meio do cuidado com o próximo, amando-o e amparando o oprimido, o excluido e o pobre, e, que muitas vezes é vitimado pela própria comunidade eclesiástica que trocou a pregação do evangelho pela palavra da prosperidade financeira, que contribui e corrobora para a prática da injustiça.

A questão da ação social por parte da igreja não é ignorada em parte alguma das Escrituras, pelo contrário, ela é incentivada inclusive pelo próprio Cristo, que aliás, aponta para o perigo de negligenciá-las:

 

E quando o Filho do homem vier em sua glória, e todos os santos anjos com ele, então se assentará no trono da sua glória; E todas as nações serão reunidas diante dele, e apartará uns dos outros, como o pastor aparta dos bodes as ovelhas; E porá as ovelhas à sua direita, mas os bodes à esquerda. Então dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai, possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo; Porque tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; era estrangeiro, e hospedastes-me; Estava nu, e vestistes-me; adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e fostes ver-me. Então os justos lhe responderão, dizendo: Senhor, quando te vimos com fome, e te demos de comer? ou com sede, e te demos de beber? E quando te vimos estrangeiro, e te hospedamos? ou nu, e te vestimos? E quando te vimos enfermo, ou na prisão, e fomos ver-te? E, respondendo o Rei, lhes dirá: Em verdade vos digo que quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes. Então dirá também aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos; Porque tive fome, e não me destes de comer; tive sede, e não me destes de beber; Sendo estrangeiro, não me recolhestes; estando nu, não me vestistes; e enfermo, e na prisão, não me visitastes. Então eles também lhe responderão, dizendo: Senhor, quando te vimos com fome, ou com sede, ou estrangeiro, ou nu, ou enfermo, ou na prisão, e não te servimos? Então lhes responderá, dizendo: Em verdade vos digo que, quando a um destes pequeninos o não fizestes, não o fizestes a mim. E irão estes para o tormento eterno, mas os justos para a vida eterna.[21]

 

É possível perceber que esse texto trás em sí um conteúdo muito confrontador, uma vez que o critério utilizado por Jesus no julgamento será a respeito da prática da Justiça. Storniolo comenta que “as ovelhas desta parábola  certamente nunca pensariam que praticando a justiça estavam prestando um culto a Deus;”[22] Interessante notar que o critério de avaliação, pelo menos nesta passagem, não é acerca de uma ortodoxia[23] cultica, mas a importancia que os crentes em Jesus deram para a questão da injustiça social ,e, como esses crentes reagiram diante disso em sua vida terrena, enquanto sal da terra e luz do mundo.

           

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


[1] WHITE, James F. Introdução ao Culto Cristão. São Leopoldo: Sinodal, 1997.p. 15

 

 

 

[2] Ibdem. p.15-16

[3] Ibdem .p.19

[4] BROWN, Colin. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2000 p.2348

[5] WHITE, James F. Introdução ao Culto Cristão. São Leopoldo: Sinodal, 1997.p.20

 

[6] Grifo meu

[7] Ibdem.p.21

[8] Não nos referimos a uma ação social institucionalizada, mas a ação como resultado de um culto que se manifesta fora do templo e alcança a vida, sendo, portanto, uma liturgia diária feita pelo cristão como sendo simplesmente algo de sua nova natureza. Ou seja, não é uma ação formal, mas uma ação natural.  

[9] STORNIOLO, Ivo. Como ler o Livro de Jó, O Desafio da Verdadeira religião. São Paulo: Paulus, 1992.p.12

[10] Ibidem. p.51

[11] CROATTO, J. Severino. Isaías, o Profeta da Justiça e da Fidelidade. São Paulo: Vozes, 1989.p.34

[12] Amós 2.6-8

[13] BALANCIN, Euclides M. & SORNIOLO, Ivo. Como ler o Livro de Amós. A Denúncia da Injustiça Social. São Paulo: Paulus, 1991, p. 19

[14] LAWRENCE, Richard C. Comentário Bíblico do Professor: um guia didático completo para ajudar no ensino das Escrituras Sagradas do Gênesis ao Apocalipse / Lawrence O. Richards; tradução; Valdemar Kroker e Haroldo Janzen - São Paulo: Editora Vida, 2004.p.535

 

[15] Ibdem.p.24

[16] STORNIOLO. Ivo. Como ler o Evangelho de Mateus, O Caminho da Justiça. São Paulo: Paulus, 1991, p.140

 

[17] Grifo meu

[18] FOULKES, Francis. Efésios, Introdução e Comentário. São Paulo: Mundo Cristão.1963.p.66

[19] KISTEMAKER, Simon J. Comentário do Novo Testamento: Atos, Vol. I. São Paulo: Cultura Cristã, 2006.p.234

[20] Ibdem .p.473

[21] Mateus 25.31-46

[22] STORNIOLO. Ivo. Como ler o Evangelho de Mateus, O Caminho da Justiça. São Paulo: Paulus, 1991.p.183

[23] Cabe ressaltar que o fato de os conceitos ortodoxos serem constantemente criticados neste capítulo, não significa, obviamente, que eles não devam ser levados em consideração, não obstante, seus conteúdos serem tratados com mais relevância nos capítulos anteriores, elucidando os significados cristocêntricos, racionais e organizados que devem nortear uma ortodoxia cristã nos cultos evangélicos.