Culto Cristocêntrico à Luz das Escrituras (3ª parte) - Louvor e Sã Doutrina

17/06/2012 15:37

 Louvor

Por louvor se compreende a exaltação a Deus pelo o que Deus faz, fez e/ou fará. HARRIS define a palavra louvor desta maneira: תהלה (t’hillâ):

 

Esta raiz conota as idéias de estar sincera e profundamente agradecido e de estar satisfeito em elogiar alguma(s) qualidade(s) superior(es) ou grande(s) feito(s) do objeto da ação. [...] O uso mais freqüente desta raiz diz respeito ao Deus de Israel. Quase um terço de tais passagens ocorre nos salmos [...] a freqüência e o modo de ocorrência enfatizam a necessidade vital de tal ação. A centralidade do culto para o entusiasmo nacional de Israel confirma ainda mais essa necessidade [...] [1]

 

O verdadeiro louvor, portanto, enaltece a Cristo, coloca toda sua atenção em Cristo pelo o que ele é e pelo que ele fez. Pelo fato de Cristo ser o centro do culto cristão.

Vielhauer (2005) afirma que apesar de o cristianismo ter produzido cantos cristãos desde o início, não os legou à sua posteridade como aconteceu com o saltério[2].

Vejamos alguns exemplos de louvores que estão centralizados na pessoa de Cristo:

Que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, Mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens; E, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz. Por isso, também Deus o exaltou soberanamente, e lhe deu um nome que é sobre todo o nome; Para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra. E toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai.[3]

 

Vielhauer esclarece que este canto descreve o caminho de Jesus Cristo. É bipartido: humilhação vv.6-8; exaltação vv.9-11.[4]

 

E, sem dúvida alguma, grande é o mistério da piedade: Deus se manifestou em carne, foi justificado no Espírito, visto dos anjos, pregado aos gentios, crido no mundo, recebido acima na glória[5].

 

Também se tem aqui um canto que descreve a entronização de Cristo[6]:  

 

Porque também Cristo padeceu uma vez pelos pecados, o justo pelos injustos, para levar-nos a Deus; mortificado, na verdade, na carne, mas vivificado pelo Espírito; No qual também foi, e pregou aos espíritos em prisão; Os quais noutro tempo foram rebeldes, quando a longanimidade de Deus esperava nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca; na qual poucas (isto é, oito) almas se salvaram pela água; Que também, como uma verdadeira figura, agora vos salva, o batismo, não do despojamento da imundícia da carne, mas da indagação de uma boa consciência para com Deus, pela ressurreição de Jesus Cristo; O qual está à destra de Deus, tendo subido ao céu, havendo-se-lhe sujeitado os anjos, e as autoridades, e as potências[7].

 

Vielhauer, citando Bultmann e Wengst, pontua que:

Apesar das tentativas destes em reconstruir o texto no original, diz que, por seu estilo ele é um canto, não uma “confissão”, ainda que contenha temas que aparecem no segundo artigo do Credo. Em concepções parecidas às de Fp 2.6ss. e 1Tm. 3.16, o canto descreve o caminho de Cristo na sequência cronológica de suas estações, e põe a ênfase na exaltação e no domínio sobre os poderes.[8]

 

Vejamos outro exemplo de texto neotestamentário que era um canto cristocêntrico entoado pela Igreja primitiva. Colossenses, capítulo 1, versículos 12 ao 20:

 

Dando graças ao Pai que nos fez idôneos para participar da herança dos santos na luz; O qual nos tirou da potestade das trevas, e nos transportou para o reino do Filho do seu amor; Em quem temos a redenção pelo seu sangue, a saber, a remissão dos pecados; O qual é imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação; Porque nele foram criadas todas as coisas que há nos céus e na terra, visíveis e invisíveis, sejam tronos, sejam dominações, sejam principados, sejam potestades. Tudo foi criado por ele e para ele. E ele é antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem por ele. E ele é a cabeça do corpo, da igreja; é o princípio e o primogênito dentre os mortos, para que em tudo tenha a preeminência. Porque foi do agrado do Pai que toda a plenitude nele habitasse, E que, havendo por ele feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, tanto as que estão na terra, como as que estão nos céus.

 

Para Vielhauer a primeira estrofe deste canto glorifica o Preexistente como mediador da criação, a segunda, o Pós-existente como mediador da reconciliação[9].

O fato é que esses cantos trazem  em si uma mensagem doutrinária. Um breve paralelo feito com os cantos entoados hoje pela igreja, e ver-se-á o distanciamento gritante nos conceitos de uma considerável parte dos cristãos no que diz respeito a louvor. O que se tem visto, na verdade é uma fragmentação de proporções avassaladora no quesito musical. O que deveria manifestar adoração a Deus por meio de Jesus, é hoje usado como meio de autosatisfação: os louvores são centrados na pessoa do homem (são antropocêntricos, triunfalistas e com um certo tom de apologia à vingança - vide "sabor de mel" da Damaris). É como se hoje Deus estivesse cantando para nós, nos louvando, numa adoração que vem de cima pra baixo. Não bastasse isso, contamos ainda com uma infinidades de paródias que se utilizam das piores letras, sendo estas cantadas na liturgia do culto por grupos que já perderam a noção do sagrado e do profano.Ora, há de se levar em conta a forma e o conteúdo no contexto do louvor. Por forma, compreende-se a maneira de agir, manifestar-se, expressar-se. A forma foi afetada pelo conteúdo estragado. Hoje, por exemplo, usa-se muito a forma de show e não de culto. Tem-se animadores e não adoradores; São formas que refletem apenas o conteúdo de muitas igrejas.

 Um culto cristocêntrico enfatiza Cristo em seus cantos. Cantos que não dão ênfase a Cristo e nem à doutrina não deveriam fazer parte da liturgia cristã, sendo, portanto, apenas “músicas de teor gospel”, sem, todavia, possuir a característica escriturística e doutrinária que deveria compor os louvores da igreja. 

 

Sã Doutrina

Outra característica da cristocentricidade do culto é a Pregação. O que dar ao povo? o que querem ouvir o que deve de fato ser dito?

Ora, aqui poder-se-ia expor todo o sermão da Sexagésima ou do Evangelho do Pe. Antônio Vieira pregado na Capela Real em 1655, pelo fato de parecer tão atual e tão válido para a Igreja hodierna. No entanto, faremos apenas algumas citações.

A problemática sugerida por Vieira é: “se a palavra de Deus é tão poderosa, se a palavra de Deus tem hoje tantos pregadores, por que não vemos hoje nenhum fruto da palavra de Deus?”[10]

Após considerar algumas razões pelas quais a palavra de Deus tem feito tão pouco fruto, Vieira pondera se a responsabilidade recai em Deus, nos ouvintes ou nos pregadores. Assim ele  assinala com base nos textos bíblicos que a responsabilidade é dos pregadores. Não sendo, portanto, nem de Deus e nem dos ouvintes. Afirma Vieira:

 

[...] Usa-se hoje o modo que chamam de apostilar o Evangelho, em que tomam muitas matérias, levantam muitos assuntos, e quem levanta muita caça e não segue nenhuma, não é muito que se recolha com as mãos vazias. Boa razão é também esta. O sermão há de ter um só assunto e uma só matéria. Por isso Cristo disse que o semeador do Evangelho não semeara muitos gêneros de sementes, senão uma só: Semeou uma semente só e não muitas, porque o sermão há de ter uma só matéria, e não muitas matérias. Se o lavrador semeara primeiro trigo, e sobre o trigo semeara centeio, e sobre o centeio semeara milho grosso e miúdo, e sobre o milho semeara cevada, que havia de nascer? Uma mata brava, uma confusão verde. Como semeiam tanta variedade não podem colher coisa certa. [...] João Batista convertia muitos em Judéia, mas quantas matérias tomava? Uma só matéria: A preparação para o Reino de Cristo! Jonas converteu os Ninivitas, mas quantos assuntos tomou? Um só assunto: a subversão da cidade. De maneira que Jonas em quarenta dias pregou um só assunto, e nós queremos pregar quarenta assuntos em uma hora! Por isso não pregamos nenhum. O sermão há de ser duma só cor, há de ter um só objeto, um só assunto, uma só matéria.[11]

 

Outrossim, o que se vê é de fato uma semeadura das diversas sementes lançadas sobre os ouvintes, sem, contudo, a força transformadora da sã doutrina.

A igreja aderiu ao marketing, à mensagem psicologizada e mercadológica, faltando o essencial para uma conversão genuinamente cristã, a saber, a pregação fiel do evangelho. Vieira percebeu isso no século XVII, e sua denúncia continua tão atual que qualquer pregador verdadeiramente fiel à exposição da Escritura deveria comungar dessa verdade.

Quantos pregadores atuais se preocupam, de fato, com uma exposição fiel da Palavra dentro dos conformes expostos por Vieira?

 

[...] Há de tomar o pregador uma só matéria, há de defini-la para que se conheça, há de dividi-la para que se distingua, há de prová-la com a Escritura, há de declará-la com a razão, há de confirmá-la com o exemplo, há de amplificá-la com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências que se hão de seguir, com os inconvenientes que se deve evitar, há de responder às dúvidas, há de satisfazer às dificuldades, há de impugnar e refutar com toda a força da eloquência os argumentos contrários, e depois disto há de colher, há de apertar, há de concluir, há de persuadir, há de acabar. Isto é sermão, isto é pregar, e o que não é isto, é falar de mais alto [...] [12].

 

Todas essas implicações e cuidados na exposição da Palavra deveriam provocar nos pregadores um inconformismo acompanhado de reflexão quanto ao que se está ensinando nas igrejas.

 

Não nego nem quero dizer que o sermão não haja de ter variedade de discursos, mas esses hão de nascer todos da mesma matéria e continuar e acabar nela. [...] Uma árvore tem raízes, tem tronco, tem ramos, tem folhas, tem varas, tem flores, tem frutos. Assim há de ser o sermão: há de ter raízes fortes e sólidas, porque há de ser fundado no Evangelho; há de ter um tronco, porque há de ter um só assunto e tratar uma só matéria; deste tronco hão de nascer diversos ramos, que são diversos discursos, mas nascidos da mesma matéria, e continuados nela; estes ramos não hão de ser secos, senão cobertos de folhas, porque os discursos hão de ser vestidos e ornados de palavras. Há de ter esta árvore varas, que são a repressão dos vícios, há de ter flores, que são as sentenças e por remate de tudo há de ter frutos, que é o fruto e o fim a que se há de ordenar o sermão. De maneira que há de haver frutos, há de haver flores, há de haver varas, há de haver folhas, há de haver ramos, mas tudo nascido e fundado em um só tronco, que é uma só matéria [...].[13]

 

O foco sugerido por Vieira é que o pregador nunca se distancie das verdades fundantes da pregação. Ora, apesar de haver as variedades de discursos, esses não podem ser alheios à Causa Primaz que sempre é a pregação do evangelho e, nunca ter como fundamento as “vãs filosofias”. Vieira prossegue:

 

[...] Sabeis, cristãos, a causa por que se faz hoje tão pouco fruto com tantas pregações? É porque as palavras dos pregadores são palavras, mas não são palavras de Deus. Falo do que ordinariamente se ouve. A palavra de Deus (como dizia) é tão poderosa e tão eficaz, que não só na boa terra faz fruto, mas até nas pedras e nos espinhos nasce. Mas se as palavras dos pregadores não são palavras de Deus, que muito que não tenham a eficácia e os efeitos da palavra de Deus? [...] Mas dir-me-eis: padre, os pregadores de hoje não pregam do Evangelho, não pregam das Sagradas Escrituras? Pois como não pregam a palavra de Deus? Esse é o mal. Pregam palavras de Deus, mas não pregam a palavra de Deus. "Aquele em quem está a minha palavra, fale a minha palavra com verdade", diz Deus por Jeremias (Jr. 23. 28). As palavras de Deus pregadas no sentido em que Deus as disse, são palavras de Deus; mas pregadas no sentido que nós queremos, não são palavras de Deus, antes podem ser palavras do Demônio [...] [14].

 

Aqui Vieira apresenta os cuidados que se deve ter na exposição da palavra de Deus, uma vez que essas palavras podem ganhar uma conotação diferente se ensinadas no sentido alheio ao que Deus disse.

Após apresentar as tentações com as quais Cristo foi submetido no deserto e, apontar que a vitória de Cristo foi o bom uso da palavra, Vieira continua:

 

[...], pois se Cristo toma a Escritura para se defender do Diabo, como toma o Diabo a Escritura para tentar a Cristo? A razão é porque Cristo tomava as palavras da Escritura em seu verdadeiro sentido, e o Diabo tomava as palavras da Escritura em sentido alheio e torcido; e as mesmas palavras, que tomadas em verdadeiro sentido são palavras de Deus, tomadas em sentido alheio são armas do Diabo. As mesmas palavras que, tomadas no sentido em que Deus as disse, são defesa, tomadas no sentido em que Deus as não disse, são tentação. Eis aqui a tentação com que então quis o Diabo derrubar a Cristo, e com que hoje lhe faz a mesma guerra do pináculo do templo. O pináculo do templo é o púlpito, porque é o lugar mais alto dele. O Diabo tentou a Cristo no deserto, tentou-o no monte, tentou-o no templo: no deserto, tentou-o com a gula; no monte tentou-o com a ambição, no templo tentou-o com as Escrituras mal interpretadas, e essa é a tentação de que mais padece hoje a Igreja. [...] [15]

 

O que se percebe é que a preocupação de Vieira, já no século XVII, tinha esse aspecto de zelo pela pregação da sã doutrina. Ao ler esse sermão hoje sem saber que ele pertence ao século XVII, pode-se correr o risco de pensar que ele foi pregado “um dia desses”, todavia, a realidade daquele contexto apenas ratifica o que já dizia o pregador no livro do Eclesiastes: “O que foi isso é o que há de ser; e o que se fez isso se fará; de modo que nada há de novo debaixo do sol.” (Ec. 1.9).

De maneira que se faz necessário um culto que tenha por princípio a fiel exposição da Palavra de Deus, pois essa é também uma marca de um culto cristocêntrico.

Lopes (2011) pontua que a centralidade do ensino da Palavra de Deus aparece em vários textos da Bíblia:

 

Em Lucas 4.43-44, percebemos que Jesus revela o lugar de  importância   da pregação em seu ministério terreno, quando afirma: “também é necessário que eu pregue as boas-novas do Reino de Deus noutras cidades também, porque para isso fui enviado. E continuava pregando nas Sinagogas e Judéia”. Ressaltamos que boa parte do seu ministério terreno foi gasto com pregação e ensino (Mt 4.17; Mc 1.14, 38-39; Lc 20.1) e por causa disso ele deixou a ordem: “Portanto, vão e façam discípulos de todas as nações batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a obedecer tudo o que lhes ordenei. E eu estarei sempre com vocês, até o fim dos tempos.” (Mt. 28.19-20).[16]

 

Tem-se que o próprio Jesus estabelece o padrão da pregação quando ele mesmo anunciava as boas novas do Reino, mostrando ser isso sua missão: “[...] Porque para isso fui enviado”.

Nos textos Paulinos, continua Lopes, também é possível encontrar imperativos que comprovam centralidade do ensino da Palavra no ministério pastoral. (vide 1ª Timóteo 4.11; 4.13; 6.2). As Escrituras tinham uma função importante no trabalho pastoral de Timóteo, e, por isso Paulo o exorta a constituir presbíteros que fossem “aptos para ensinar” (1Tm. 3.2).[17]

Como se pode perceber, vê-se nas Escrituras inúmeras recomendações acerca da importância de se ensinar a sã doutrina. Mas o que vem a ser a “sã doutrina”?

Em Tito, capítulo 1, versículo 9 está escrito: “Retendo firme a fiel palavra, que é conforme a doutrina, para que seja poderoso, tanto para admoestar com a sã doutrina, como para convencer os contradizentes.”

Segundo Lopes, o termo “sã” vem de hugieinós, e significa “saudável”, “que dá vida” ou “que preserva a vida”; esse termo dá origem à palavra “higiene” [18].

Ora, isso significa que se Paulo exorta para que se ensine a “sã doutrina”, é porque existe a doutrina “adoecida”, aquela que afasta da verdade. Portanto negar a palavra de Deus e/ou deturpá-la é negar ao próprio Deus. Um culto cristocêntrico é, antes de tudo, um culto centrado na Palavra de Deus. 

Quando o culto tem como critérios esses requisitos ele se acopla dentro de uma perspectiva que também faz parte de um todo para o culto cristão: a racionalidade e a ordem.  Esses princípios se fazem importantes, uma vez que a Escritura declara que o que se deve oferecer a Deus é um culto racional e organizado. Portanto, a cristocentricidade do culto passa pelo viés da razão, bem como da organização, como se pode ver a seguir.

 

(continua...)



[1] HARRIS, R. Laird. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998. p. 357-358

[2] VIELHAUER, Philipp. História da Literatura Cristã Primitiva: Introdução ao Novo Testamento, aos Apócrifos e aos Pais Apostólicos. Santo André: SP: Academia Cristã, 2005 p. 69-70

[3] Filipenses 2.6-11

[4] Ibdem. p.70-71

[5] 1 Timóteo 3.16

[6] Ibdem p.71

 

[7] 1Pedro 3.18-22

[8] Ibdem. p. 72 

[9] Ibdem p. 74

[10] VIERIA, Pe. Antônio. Sermões Escolhidos. São Paulo: Martin Claret. p. 82-103

 

[11] Ibdem. p. 94-95

[12] Ibdem. p. 95

[13] Ibdem. p. 95

[14] Ibdem. p.102-103

[15] Ibdem. p.103

[16] LOPES, Edson Pereira. Fundamentos da teologia Pastoral. São Paulo: Mundo Cristão, 2011. P. 115

[17] Ibdem. p.115

[18] Ibdem. p. 116